domingo, 31 de março de 2013

História e cinema: rumo à Libertação das mentes

[olha que matéria legal! mais um estudioso das relações entre cinema e história em Goiás. republico a notícia de autoria de Euler de França Belém sobre a defesa de dissertação em história, realizada na UFG, do historiador Edilson Carlos. estranhei um pouco a ênfase (dada no título da matéria original) sobre a profissão do colega egresso do curso de História da PUC-GO. não sei se o destaque dado ao fato dele ser barbeiro contribuiu para a recepção do restante do artigo e mesmo em ralação à pesquisa do historiador em questão. talvez seja apenas chatisse de minha parte, como sempre. ou, o que acho mais plausível, a chamada seja apenas um recurso de gosto duvidoso para chamar atenção dos possíveis leitores (mas, como eu também vivo fazendo isso aqui no blog, não me cabe falar mais nada. rs). por fim, o que eu gostaria de ressaltar é que, finalizada a graduação, ele já era um historiador (exercendo ou não a profissão). agora, como mestre, a sua habilitação como profissional da história se solidifica ainda mais. ...agradeço ao sempre mestre, guru intelectual e modelo profissional, prof. Antônio Lwyz por ter compartilhado essa notícia]
 
 
Edição 1969 de 31 de março a 6 de abril de 2013
Educação
O barbeiro que virou mestre pela UFG
Edilson Carlos, do salão New Star, teve aprovada dissertação sobre as relações entre cinema de resistência e história na América Latina
Euler de França Belém
Edilson Carlos: o barbeiro que mostra conexões entre o cinema e a história da América Latina
Euler de França Belém
Edilson Carlos Costa Correia viu o primeiro filme, “Os Dez Mandamentos”, de Cecil B. DeMille, aos 6 anos, numa paróquia da Igreja Católica, no Maranhão. Paixão à primeira vista. O cinema e o Edilson nunca mais foram os mesmos e, de alguma forma, se tornaram uma coisa só: um caso perene de amor. Aquele filme, apresentado em praça pública e em condições inadequadas — as imagens foram projetadas numa parede da igreja —, é a madeleine proustiana do menino que se tornou homem. Se Ruimar Ferreira é o príncipe da barbearia New Star, exclusiva para homens e dotado de uma biblioteca com livros de autores goianos — o gramático Evanildo Bechara visitou-a e, impressionado, disse que era a mais charmosa do País (a referência, de fato elegante, da Praça Ta­mandaré, em Goiânia) —, Edilson é o duque. “Sou barbeiro, e com muito orgulho”, afirma. Porém, quando não está cortando cabelos e começa a conversar sobre vários assuntos, é que se percebe o homem de cultura, formado em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Formou-se com dificuldade, porque a universidade é cara para um estudante que sustenta mulher e dois filhos, ambos universitários.  Edilson estudou em escolas públicas (devido ao trabalho, concluiu o ensino médio em seis anos) mas, por trabalhar o dia inteiro, teve de buscar uma escola particular para fazer um curso superior. Foi aprovado no vestibular da PUC aos 33 anos. “Eu sentia que era mais velho que a maioria dos colegas, mas sabia que era preciso perseverar”, anota. “Sou de uma família de dez irmãos e apenas dois, eu e uma irmã, formada em Geografia, conseguimos chegar à universidade.”

Ao terminar o curso, em 2006, pôs uma ideia na cabeça e quase uma câmera nas mãos. Decidiu que iria fazer mestrado em Cinema e História na Uni­versidade Federal de Goiás. Ele defende uma tese permanente: o cinema pode iluminar a história de um país e vice-versa. Mais: o cinema pode contribuir, ao interpretar e criticar, para “mudar a realidade”. Obsessivo, procurou o professor doutor Elias Nazareno e apresentou o que, inicialmente, era mais uma ideia do que um projeto: queria examinar um filme de Mel Gibson. Seu orientador sugeriu outros caminhos, que se revelaram mais proveitosos e deram um eixo consistente às investigações de Edilson. Ele decidiu estudar três filmes de diretores latino-americanos, “Terra em Transe” (1967), do brasileiro Glau­ber Rocha; “Memórias do Subde­sen­volvi­mento” (1968), do cubano Tomás Gutiérrez Alea; e “O Sangue do Condor” (1969), do boliviano Jorge Sanjinés.

Na terça-feira, 26, Edilson, aos 42 anos, nove anos depois de ter sido aprovado no vestibular, defendeu a dissertação de mestrado “O Nuevo Cine Latino-Americano a partir de uma perspectiva intercultural e decolonial: ‘Terra em Transe’, ‘Memórias del Subdesarrollo’ e ‘El Sangre del Cóndor’”. Foi aprovado.

Defesa de críticas

No início, mesmo um pouco nervoso, apresentou as ideias de sua dissertação com segurança e provou que havia estudado a fundo o assunto. Saiu-se melhor quando defendeu-se das críticas pertinentes do professor Ademir Luiz, doutor em História e um dos integrantes da banca.

Para Edilson, o cinema é mais do que entretenimento. Glauber, Alea e Sanjinés, ao menos nos três filmes dissecados, “não queriam” tão-somente divertir a plateia. Pretendiam influenciá-la e estabelecer uma crítica ao, digamos assim, “imperialismo”, à perspectiva “ocidental” — europeia e americana, quem sabe, mais do que puramente ocidental. Se havia um projeto estético, que chamou a atenção do público interno mas também contraditoriamente encantou o público externo (europeus, público e cineastas, aplaudiram os filmes, ao menos com mais intensidade os de Glauber e de Alea), Edilson sugere que é preciso ressaltar que havia uma crítica refinada, a partir de uma perspectiva que nomina de decolonial (que não é o mesmo que pós-colonial). Pode-se falar, a partir do estudo do mestre, em “resistência política e epistêmica”. Os cineastas latino-americanos “criaram”, por assim dizer, um conhecimento (uma crítica) e uma estética locais para interpretar suas próprias realidades — independentemente do que disseram e analisaram europeus (colonizadores políticos e econômicos) e norte-americanos (colonizadores econômicos, abrindo espaço para autonomias políticas relativas locais). Isto é o que Edilson chama, de modo mais sofisticado e acadêmico, de “perspectiva decolonial e interculturalidade epistêmica”.

Os cineastas apontados, segundo o registro de Edilson, propuseram, com uma estética e uma crítica locais, a “descolonização do saber”. Eles apresentaram, aponta o mestre em história, um “conhecimento contra-hegemônico”. Não um conhecimento puramente acadêmico, frisa o historiador, e sim um conhecimento que faz parte da luta pela “independência” econômica, política e cultural de países que foram historicamente dominados, colonizados. Trata-se de uma batalha pela “libertação geral”, sugere Edilson. “A autonomia econômica e política às vezes é reforçada pela cultura”, frisa Edil­son. Por isso, não se trata apenas de entreter. Trata-se de interferir na realidade, com um projeto de nação e, assim, de não repetir necessariamente os projetos hegemônicos.

O historiador Ademir Luiz, que examinou detidamente a dissertação de mestrado, acrescentando informações relevantes para uma possível publicação em livro, apontou algumas falhas, não estruturais, e disse que o texto tem “qualidades”. A professora Heloísa Capel apresentou as virtudes do trabalho de Edilson, ressalvou algumas “divagações” e notou as conexões entre história e arte (cinema). Sobre seu orientador, Elias Nazareno, Edilson é sucinto: “É competente, ético e rigoroso”.

Agora, com o mestrado concluído, Edilson pretende lecionar história. “Quero compartilhar o que aprendi”, resume. Mas alerta aos seus vários clientes: “Mas é claro que vou continuar trabalhando na barbearia”. Ele continuará “fazendo a cabeça” da elite goiana, no New Star, mas pretende, nas salas de aula, “iluminar a cabeça dos estudantes”.