quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Sensibilidade hetero

Clint Eastwood durante as gravaes de Gran Torino
Clint Eastwood durante as gravações de Gran Torino

[Antes de publicar o texto de Rodrigo Elias, sobre o cineasta Clint Eastwood (na sequência), gostaria de dizer que esse diretor muito me incomodou. para o bem e para o mal. ao terminar de assistir “Sobre meninos e lobos” fiquei (senão com uma leve impressão de homofobia) diante de uma valorização descabida da heterossexualidade. precisaria voltar ao filme para rever essa opinião ou melhor construí-la. mas, prefiro a irresponsabilidade da memória. enfrentar a obra de um diretor como Eastwood que, para mim, tematiza sempre os valores/cultura heteronormativa, além de ser ‘de direita’ (se temos outro termo para se referir à orientação política dos estadunidenses me digam vocês - eis um preconceito ainda vivo em mim)... não é algo fácil para esse que escreve aqui. mas, posso dizer que Eastwood ajudou muito a desconstruir meu preconceito contra o cinema dos EUA. Algo que se deu ‘às duras penas’ (situaçaõ que o diretor muito valoriza em seus filmes). para mim, raramente, dos 'istasunis' viria filmes que não quisessem apenas me entreter (e assim construir também meus valores políticos e sociais sobre a sociedade e o sentido da vida em geral). cinema estadunidense não passava de 'sessão da tarde', 'telaquente', 'domingo maior'… no máximo, 'de oscar'. isso se dava, claro, porque a televisão globo(bo) dominava meus conceitos sobre o cinema daquele país. felizmente, isso começou a ser quebrado com as mostras de cinema que participei; com meu respeito por Quetin Tarantino; com a chegada democrática da internet (com seus sítios hospedeiros de filmes); do aumento de meu capital cinematográfico; com a descoberta do Sundance Filme Festival... enfim, com o fato de eu ter deixado de ser menos idiota (pois é somente a idiotice que alimenta todo e qualquer preconceito). Foi então que pude descobrir Clint Eastwood. Vamos lá! Diverti-me o bem feito Unforgiven, (1992). Tive uma crise de choro profunda depois de assistir o memorável The Bridges of Madison County (1995). Assistido graças à influência da querida professora Fabiana Fredrigo, que o indicou para assistirmos depois de um longo e cansativo dia de trabalho na organização de um evento (que não me recordo agora. acho que foi o da ANPHLAC). na época, andava muito de bicicleta, sempre com o fone nos ouvidos, claro. depois do filme, fui para casa e no meio do caminho caiu o maior pé d’água. na hora, passava a música dos The Smiths (que está na trilha sonora de (500) Days of Summer - ouvia constantemente aquele álbum na ocasião). foi uma conjunção fatal: musica, filme, chuva e o entardecer. chorei tanto, compulsivamente! as lágrimas disfarçadas pela chuva… “meu deus, o que estou fazendo de minha vida?” me perguntava. O fato de ter demorado tanto para assistir esse filme (que é de 1995 mas que somente o fiz em 2010) deveu-se ao meu preconceito contra seu diretor. “Vai mais. Acho é pouco!” diria a querida professora Nilcole. Além desse filme, lembro-me de ter assistido Midnight in the Garden of Good and Evil (1997), que não me marcou muito. Depois disso, assiti Mystic River (2003) o tal filme citado no início desse post. Em 2004, com Million Dollar Baby decididamente Clint Eastwood começou a conquistar meu respeito cinematográfico. contudo, confesso que assisti ao filme levado pelo trabalho de Hilary Swank (que me provocou a primeira grande depressão depois de ter assistido ao filme Garotos não choram). Em 2006, vieram A Conquista da Honra  e Cartas de Iwo Jima. Esses filmes foram tema de estudo para o mestrado em história do meu primeiro grande mestre Antônio Luiz de Souza (o “iLwyz”) intitulado “Rascunhos do tempo: a Conquista da honra e Cartas de Iwo Jima reescrevem a história e a memória” (defendida em 2009, na PUC-GO). Em 2008, Clint Eastwood dirigiu o foucaultiano Changeling mas, em meu desejo de lógica e de realismo naturalista, sua trama não me convenceu (apesar de toda a pertinência da discussão proposta pelo filme). No ano seguinte (putz) assisti Gran Torino filme que me derrubou outro grande preconceito: que a sensibilidade heterossexual masculina era (de todo) dispensável para mim. o filme me encantou: um homem heterossexual (me refiro ao trabalho de criação do diretor) possui uma sensibilidade que, inclusive, com a qual eu pudesse admirar e aprender. então, lembrei-me de outro artista que gosto muito. do cantor Geraldo Azevedo. Assim como o diretor, também fala sobre o mundo heterossexual com efetiva sensibilidade. mas de Azevedo eu já gostava há muito tempo. Até assitir ao Grand Torino, todas as leituras escolares e acadêmicas feitas por mim, não conseguiram quebrar o preconceito contra a heterossexualidade masculina, para mim, carente de toda e qualquer sensibilidade. além das canções (e do artista em si) de Geraldo Azevedo, somente o cinema de Eastwood a revelou. “Homem também chora” e faz chorar, não só com a força de seus atos, mas também com sua sensibilidade. Dedico esse post ao iLwyz, cuja força sensível, não coincidentemente, sempre me lembrou o Clint Eastwood]



Bons motivos, por Rodrigo Elias

Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e
arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras
e dar-lhes fim tentando resistir-lhes?
Morrer... dormir... mais nada...
'Hamlet, Príncipe da Dinamarca', de William Shakespeare (1603).



 
A morte ronda o cinema. Às vezes serve para pintar a tela com sangue, como o faz magistralmente Quentin Tarantino, ou oferece um elemento de tensão dramática que amarra um roteiro e prende a atenção do espectador, como ensinou Alfred Hitchcok. Às vezes é banal ou serve à exteriorização de algum prazer mórbido, como nos brindou as olimpicamente canhestras atuações de Charles Bronson ou Chuck Norris; outras vezes, é o tema principal, mesmo que não dito, e serve como uma reflexão sobre a validade da vida – como fez, em algumas ocasiões, o diretor norte-americano Clint Eastwood.  
Famoso por interpretar vaqueiros e policiais durões, como em Três homens em conflito (“The Good, the Bad and the Ugly”, 1966) ou em Perseguidor implacável (“Dirty Harry”, 1971), o ator e diretor norte-americano mergulhou, nas últimas décadas, em narrativas marcadas por esta que é uma pergunta fundamental: viver vale a pena?
Filmes como Menina de ouro (“Million Dollar Baby”, 2004), Cartas de Iwo Jima (“Letters from Iwo Jima”, 2006) e Gran Torino (2008) mostram não apenas o amadurecimento de um diretor outrora apenas prático ou burocrático (o californiano é conhecido por cumprir prazos e respeitar orçamentos), mas um verdadeiro mergulho na única questão filosófica relevante: o suicídio.
Oriundo de uma família de trabalhadores, Clinton Eastwood Junior cresceu durante a Grande Depressão entre San Francisco, Berkeley e Oakland. Nestas cidades, foi frentista de posto de gasolina e construtor de piscinas, além de tentar trabalhos como ator, em uma juventude marcada por bebedeiras e aventuras típica de um “heterossexual furioso”, como já foi descrito. Durante a Guerra da Coréia (1950-1953), o jovem e esbelto fã de jazz foi recrutado pelo exército, mas não foi para o teatro de operações: permaneceu na Califórnia como instrutor de natação, e pode conviver com estrelas de cinema que emprestavam sua fama para o esforço bélico norte-americano.

Obstinado, teve sua primeira grande chance interpretando o vaqueiro Rowdy Yates no seriado televisivo Rawhide, entre 1959 e 1965. Neste famosíssimo seriado de faroeste, que abriu as portas para que entrasse no wersten spaghetti, Eastwood acabou forjando um tipo que apareceria em vários dos seus trabalhos – o homem prático, destemido, moralmente impávido e sem tempo para bobagens como amor. A longa carreira como diretor e a confiança que conquistou do público e dos estúdios, consolidadas na sua produtora, a Malpaso, fundada ainda na década de 1960, deram ao diretor a possibilidade de produzir, dirigir e até mesmo atuar em películas de grande densidade, colocando em primeiro plano dilemas morais e existenciais com os quais o público pode facilmente se identificar – e tudo com uma qualidade raramente questionada.
Em Menina de ouro, que traz no papel-título Hilary Swank, em atuação que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz em 2005, Eastwood vive um homem durão e supostamente insensível, treinador de boxe, confrontado por uma contumaz aspirante a lutadora. Em uma relativamente previsível seqüência de acontecimentos, Maggie, personagem de Swank, conquista o respeito e a admiração do rabugento treinador Frankie, e chega rapidamente ao estrelato esportivo. A vida da lutadora, entretanto, não é fácil de ser vivida. Pobre e disfuncional, a família de Maggie é composta ainda por aproveitadores – o que inclui sua mãe e seus irmãos. Em uma reviravolta inesperada, a personagem se vê em uma situação-limite, impedida de lutar ou de controlar qualquer pequeno aspecto da sua vida. Ela, então, se faz a pergunta fundamental. E a resposta, neste caso, é não. A vida, naquela situação, não valia a pena. Lutadora, Maggie agora precisa convencer novamente o teimoso Frankie – a ajuda, agora, não era mais o aprendizado do pugilismo, mas a eutanásia.
A morte e a guerra
Em Cartas de Iwo Jima, lançado conjuntamente com A conquista da honra (“Flags of Our Fathers”, 2006), Eastwood dirige o olhar para a participação japonesa no episódio dramático da tomada da ilha no Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. A morte, tema central em qualquer discurso minimamente razoável sobre a guerra, é protagonista do filme. Não apenas por conta da óbvia situação extrema que é o conflito armado, mas por tratar da forma tradicional que a cultura nipônica lidava com a derrota militar naquele contexto.
Em uma sociedade profundamente marcada por valores ligados à devoção total ao imperador e à nação japonesa, os soldados tinham a obrigação de não se deixar capturar – o suicídio ritual era não apenas sugerido, mas imposto a todos os homens na cadeia de comando das forças imperiais acuadas nas trincheiras e nos túneis de Iwo Jima, cenário do hasteamento de bandeira mais famoso da história, utilizado como propaganda americana ao longo do conflito. Naturalizada pela maioria da soldadesca nipônica, a morte voluntária é rejeitada por um dos jovens recrutas, recém-casado, pai de um bebê e proprietário de uma pequena padaria. A vida, neste caso, ainda precisava ser vivida – e este é o fio que liga todas as pontas da narrativa.

Cena de Menina de Ouro
Cena de Menina de Ouro
Gran Torino
, uma das atuações mais memoráveis de Eastwood, traz o velho ator, já à beira dos 80 anos, no papel de Walt Kowalski, um típico conservador americano, de classe média, veterano da Guerra da Coréia, viúvo, distante dos filhos, com gramado impecável e bandeira hasteada na varanda. Para seu azar, seus novos vizinhos são uma família hmong, uma etnia asiática, entre os quais está um adolescente tímido e potencial alvo de uma gangue, Thao, vivido por Bee Vang. O garoto é influenciado por um parente bandido e tenta roubar o xodó de Kowalski, um ford Gran Torino 1972 que teve em sua linha de montagem o próprio aposentado. Kowalski, que tem uma péssima relação com a família – um dos filhos, para o seu desgosto, trabalha em uma montadora de carros japonesa –, acaba por criar um vínculo com o vizinho problemático. Com poucas falas, a maioria das quais profundamente preconceituosas ou, no mínimo, deselegantes, o personagem de Eastwood – que chega a rosnar em algumas ocasiões mais tensas – cobre um arco emocional raras vezes visto em uma produção hollywoodiana com frases lapidares. Em uma das cenas, ao confrontar um grupo de jovens negros que estão agredindo um jovem branco e a irmã de Thao, solta uma das suas pérolas: “Já repararam como às vezes aparece alguém com quem vocês não deveriam se meter? Sou eu.” Mais uma mímica, um revólver e a questão está resolvida.
A trama caminha para um desfecho inesperado e de grande dramaticidade, sobretudo por conta do fortíssimo e inusitado vínculo de natureza fraternal e paternal desenvolvido entre o republicano e racista Kowalski e o asiático e desajustado Thao. No fim das contas, como golpe final para a proteção do adolescente, o veterano personagem de Easwtwood lança mão do único e mais forte recurso que ao qual às vezes se pode dispor: a própria vida. O suicídio altruísta – na classificação durkheimiana – do personagem principal encerra a fatura de forma grandiloquente, e confere a Gran Torino um lugar especial na filmografia do ator-diretor.
Estigmatizada em muitas culturas, tabu na maioria delas (os jornais raramente noticiam suicídios), a morte voluntária é uma questão central ao gênero humano – não é à toa que a religião cristã tem como elemento fundador um personagem que vem ao mundo para... morrer –, mas pouco discutida efetivamente, inclusive nas telas. Clint Eastwood, mesmo sem anunciar, tem proposto visões sobre o tema. Qualquer que seja a resposta fílmica que se dê à pergunta deflagradora, esta tem sido colocada de forma sensível e bela – o que, em si, deveria ser uma das funções da sétima arte. 













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