segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Baseado em fatos reais


[Reproduzo abaixo o um texto de Oldimar Cardoso, que foi conferencista no ultimo encontro estadual de História da ANPUH/GO e cuja fala foi tão estimulante e polêmica. Boa leitura!]
 
REFERÊNCIA: Revista de História da Biblioteca Nacional. Edição nº 83 - Agosto 2012. Edição nº 83. Agosto 2012. Disponível em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/baseado-em-fatos-reais Acessado em 26 de agosto de 2012

BASEADO EM FATOS REAIS, por Oldimar Cardoso.


Não é de hoje que o cinema frequenta as aulas de História nas escolas. Os alunos gostam. Os professores também. Como recurso pedagógico, a sétima arte é quase uma unanimidade. Mas é preciso ter cuidado. É bem verdade que o uso do cinema como ferramenta de ensino é capaz de deixar a aula mais dinâmica e divertida; entretanto, o professor deve estar atento para as armadilhas que essa estratégia pode gerar.
A exibição de filmes tanto pode funcionar como um proveitoso momento de crítica e aprofundamento de um tema histórico como ser uma simples sessão da tarde, pura diversão para a turma. Pior do que isso: dependendo da maneira como o professor utiliza o filme, o resultado final do processo pode ser desastroso. O problema é que não existe uma fórmula infalível a ser aplicada. Não há uma maneira certa e outra errada de ensinar os alunos por meio do cinema. Ainda assim, podemos refletir sobre esse tipo de atividade e talvez adaptar seu uso para um melhor aproveitamento, de acordo com o que pede o contexto.
O primeiro ponto a se levar em conta é que um filme, por melhor que seja, jamais revela o passado aos alunos. Ele é apenas uma forma original de representar determinado período. Por exemplo:

exibir “Tróia” (Wolfgang Petersen, 2004) para ensinar sobre a Antiguidade grega,

“Gladiador” (Ridley Scott, 2000) para tratar do Império Romano ou

“Olga” (Jayme Monjardim, 2004) para falar sobre o Brasil republicano não significa desvendar essas épocas históricas para os alunos.
Os diretores desses filmes empregam figurinistas e utilizam o serviço de historiadores para reproduzir com fidelidade as espadas dos guerreiros greco-romanos ou os casacos da década de 1930. As roupas e armas podem até ser réplicas incrivelmente fiéis, idênticas às originais, mas o comportamento dos personagens e as maneiras de agir e falar deles estão mais relacionados ao presente do que ao passado que desejam representar.
Assim, o personagem Achilles do filme “Tróia”, interpretado por Brad Pitt, lembra mais um homem supervaidoso, um metrossexual dos nossos dias, do que um semideus grego. O Commodus do filme “Gladiador” se comporta como um presidente estadunidense do século XX, e não como um imperador romano. Composto pelo ator Joaquim Phoenix, o personagem age como um governante e estadista cujo perfil seria comum nos dias atuais, mas que não poderia existir no sistema político da Roma antiga.
Outro exemplo dessa distância entre caracteres ficcionais e figuras históricas reais se encontra no filme “Olga”, de Jayme Monjardim, no qual os protagonistas se assemelham mais a um par romântico de novela – não à toa, o diretor se consagrou nesse tipo de formato para a televisão – em vez de retratarem fielmente dois militantes comunistas dos anos 1940.
Antes que essa visão crítica desanime o professor, é bom deixar claro: o fato de a linguagem audiovisual não retratar a realidade histórica como ela teria acontecido não inviabiliza de forma alguma sua utilização em sala de aula. Se o cinema atual mantivesse a fidelidade total às características das personagens que retrata, dificilmente seria capaz de seduzir os espectadores contemporâneos. Talvez, aos nossos olhos, os verdadeiros Achilles, Commodus e Olga parecessem bastante tediosos.
Essa licença poética praticada pelo cinema, que permite ao diretor trazer esses personagens históricos para perto dos espectadores, é, então, muito bem-vinda. É também, como vimos, inerente à linguagem audiovisual. Mesmo aquele diretor que deseja ser absolutamente fiel à realidade histórica representada terá de lidar com esse procedimento de criação de personagens e adequação da forma narrativa.
Outra interpretação que pode ser evitada é considerar os filmes como caricaturas equivocadas e deploráveis a serem desacreditados pela historiografia. Até porque a construção de caricaturas não é exclusividade da ficção nem dos meios de comunicação – elas também estão presentes na historiografia, como resultado de complexas disputas de poder empreendidas nas universidades, nos museus, nos arquivos, nas revistas científicas, nas editoras e nos órgãos financiadores de pesquisa. O que define as inovações da História não é a objetividade – ou a originalidade – das fontes consultadas, e sim ações falíveis, realizadas por historiadores de carne e osso, com todos os seus vícios e dilemas. Ainda que revestido de legitimidade institucional e de status científico, o historiador é humano, e o produto de seu conhecimento não pode ser considerado algo neutro e objetivo.
Não é papel dos professores desmistificar o processo de elaboração dos personagens baseados em figuras históricas para o cinema. O que os mestres podem e devem fazer é ensinar aos alunos que tanto as narrativas ficcionais quanto a historiografia trabalham com construções, com personagens criados com base em determinadas versões e descrições. Assim o estudante tem a oportunidade de aprender não só a refletir criticamente sobre as características da sétima arte, mas, sobretudo, a compreender que toda representação, seja a do cinema ou a da historiografia, é parcial e relacionada aos contextos nos quais foi idealizada e realizada. A Olga interpretada pela atriz Camila Morgado, apresentada no filme de Jayme Monjardim, não é fruto apenas da criatividade do roteirista e do diretor — está pautada em pesquisas históricas, ainda que recriadas de maneira parcial. A Olga que o espectador fica conhecendo no filme não é estritamente ficcional, mas uma distorção e amplificação das informações obtidas em diversas fontes de pesquisa.
Para os alunos compreenderem por que o cineasta distorceu e amplificou sua personagem dessa forma, é preciso que eles entendam principalmente o contexto histórico de produção da obra. Desse modo, compreenderão que não existe uma Olga caricatural e outra verdadeira. As fontes nos apresentam informações para criar tanto a mulher romântica quanto a militante comunista, pois ambas as características, por mais distantes que aparentem ser, faziam parte da personalidade da figura retratada, contraditória como a de todas as pessoas. Substituir simplesmente uma personagem por outra, desconstruindo o mito da Olga romântica em favor da militante, mesmo que por meio de reflexão crítica, contribui pouco para a formação dos alunos.
De acordo com a narrativa escolhida pelo autor, podem-se privilegiar algumas características da pessoa abordada em detrimento de outras, menos interessantes para o perfil que se deseja traçar. Mais do que aprender que Olga foi isso ou aquilo, os estudantes podem compreender por que uma é romântica e a outra é militante, ou como uma leitura anticomunista dos fatos históricos poderia transformá-la numa terrorista. Aprende-se, assim, que todas as formas de narrar o passado incluem uma interpretação particular dos fatos ocorridos.
É ingenuidade utilizar-se um filme com a pretensão de mostrar a história como ela realmente ocorreu. Por outro lado, também é empobrecedor apresentar a narrativa apenas como uma caricatura errônea. Podemos tomar como exemplo a produção “Independência ou morte” (Carlos Coimbra, 1972), um drama histórico que celebra os 150 anos da independência do Brasil.

Um professor que concorde com a versão encenada poderia utilizar a obra para ensinar a história oficial de nossa independência – entendida como um ato individual de D. Pedro. Outro professor, que tenha uma posição crítica em relação a essa visão histórica, pode usar o mesmo filme para debochar de tal representação, ensinando para os alunos que a narrativa é equivocada, mentirosa e não representa a verdade dos fatos. Essas duas opções podem provocar mal-entendidos.

Como nos alerta o historiador Eric Hobsbawm em sua obra Sobre a História, a tendência de relativizar a História precisa ter um limite: “Ou Elvis Presley está morto ou não”. Encontraremos muita dificuldade se acreditarmos que todos os acontecimentos são incertos e passíveis de infinitas interpretações. Os historiadores estabelecem algumas datas e acontecimentos por unanimidade. Olga, por exemplo, foi deportada do Brasil em 1936. Essa informação, ao contrário do caráter romântico/militante da personagem, não pode ser relativizada. Assim foi, e ponto final, até que alguém traga à tona novos fatos históricos e, com sua pesquisa, prove o contrário.
Os equívocos aqui descritos são resultado de uma determinada definição das relações entre saber escolar e saber científico. Segundo essa noção, caberia aos historiadores criar nas universidades um conhecimento de referência para ser adaptado, transposto ou reproduzido pelos professores dentro das escolas. Mas, independentemente do desejo deles, os professores nem sempre levam em conta novas pesquisas que relativizam e repensam a leitura de certos fatos e personagens. A História ensinada nos colégios acaba não sendo uma reprodução exata daquela produzida pelos historiadores.
Não é preciso muito tempo de experiência dentro de uma sala de aula para se perceber que ensinar nas escolas é algo muito mais complexo do que elaborar uma versão simplificada e facilitada da historiografia para os alunos. Aliás, se formos rigorosos, as pesquisas que vêm sendo feitas na academia influenciam muito pouco o conteúdo que compõe a disciplina escolar. Por isso, a utilização do cinema nas aulas de História não precisa enaltecer ou ridicularizar a representação do filme em nome de uma pretensa visão correta da História. Os alunos podem aprender algo mais interessante se conseguirem entender que o cinema não passa de uma representação.
 
Oldimar Cardoso é autor da tese “A didática da história e o slogan da formação de cidadãos” (USP, 2007) e das coleções de livros didáticos “Tudo é história” e “História hoje” (Ática, 2006 e 2008). 
 
 
As muitas versões de uma história
Para evitar os equívocos citados neste artigo, uma boa estratégia é utilizar obras que fogem ao estereótipo dos “filmes históricos”. É o caso do chinês “Herói” (Zhang Yimou, 2002)

e do brasileiro “Narradores de Javé” (Eliane Caffé, 2003).

O longa-metragem de Caffé pode ser utilizado para ensinar o processo de independência do Brasil, uma ótima opção aos tradicionais “Independência ou morte” (Carlos Coimbra, 1972) e “Carlota Joaquina, princesa do Brazil” (Carla Camurati, 1995). O filme conta a história dos moradores da pequena Javé. Eles precisam registrar os principais acontecimentos da cidade para caracterizá-la como patrimônio histórico e salvá-la de uma inundação. Ao fazê-lo, suas fontes orais reproduzem a estrutura narrativa típica das histórias nacionais: Javé surgiu da migração de um povo injustiçado que, conduzido por um herói, passou por muitas privações e venceu. A cineasta nos mostra, por exemplo, o quanto é discutível acreditar em heróis, povos valentes e versões unívocas dos acontecimentos. As entrevistas do filme ainda nos ajudam a ensinar aos alunos que as fontes não são isentas ou imparciais. Muito pelo contrário. Quando a entrevistada é uma mulher, por exemplo, surge a versão de que Maria Dina seria a verdadeira fundadora de Javé. Na entrevista de um negro, é um personagem da mesma cor que ganha o honroso título. Assim, o filme nos ajuda a alertar os alunos sobre os complexos processos de construção da História.
 
Saiba Mais - Bibliografia:
HOBSBAWM, Eric. Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
NAPOLITANO, Marcos. Como utilizar o cinema na sala de aula. Contexto, 2003.
 
Saiba Mais - Filmes:
“Narradores de Javé”, de Eliane Caffé. Brasil, 2003, 100 min.






















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