terça-feira, 2 de agosto de 2011

Os benefícios da depressão

[ao assistir o mais recente filme de Lars Von Trier fiquei impactado. minha capacidade de entendimento sumiu. Em seu lugar, apenas a magia da experiência aconteceu/funcionou. o que sempre acontece nas situações que escapam à minha intelecção. por sua vez, a falta de entendimento é recompensada pelo aguçamento da percepção. Torno-me, estranhamente, mais sensível à realidade vivida. o desenrolar da experiência se torna, naquele momento, a totalidade do vivido. tudo parece um presente monolítico, sólido, petrificado: Aqui-Agora. o resultado é uma memória (co)insistente que não se aquieta. Assim, aquela experiência vivida volta constantemente em forma de lembrança. geralmente, é o que acontece com alguns filmes. apesar deles não se tornarem “os meus preferidos” são os que acabam mais me incomodando. por não serem “entendidos”, permanecem em questão, na pauta de minha mente. obrigam-na, constantemente, a retomar tais filmes, até que se produza, enfim, algum entendimento sobre o que vi/vivi. aí, então, o incômodo se aquieta para dar lugar “à minha opinião”. e ela traz consigo o conforto. o entendimento me desobriga. então, me tranquilizo (até a próxima provocação...). foi o que aconteceu com Melancholia e, de certa forma, com quase todas as películas de Von Trier. algumas, confesso, já desisti. não encontrei sentido, não entendi e achei melhor colocar uma pedra sobre a questão (caso de Europa, por exemplo). outros, levaram-me a uma enchente de pensamentos/opiniões (caso de Anticristo). Outros, entraram para o rol dos “preferidos” (como Dogville). um, em específico, não consegui prosseguir na assistência, por mais de uma vez tentada (Manderlay) ou se assisti todo não me lembro (o que é pior...). Da filmografia do diretor, ainda existem os famosos“desejados” (Dançando no escuro e Os idiotas) ainda não vistos. Bom, quis dar ao leitor uma pitada de minha relação com o diretor dinamarquês que, em 2011, esteve envolvido em um pequeno escândalo cult, ao ser expulso do conselho dirigente do festival de Cannes (fez algumas declarações e foi interpretado como simpatizante nazista. conclusão apressada e um tanto improvável diante dos valores e das questões apresentadas no conjunto de sua produção fílmica). mas, não vou entrar nessa seara. finalizo aqui meus parênteses retos (como se diz em Portugal) para deixar vocês com o texto sobre “Melancholia” escrito pelo intelectual à esquerda que muito gosto, Vladimir Safatle. Saudações da capital dos Guayazes]

Melancholia, por Vladimir Safatle
Poucos são os cineastas realmente necessários para nossa época. Lars Von Trier é certamente um deles. Talvez alguns de seus filmes estejam entre as melhores reflexões contemporâneas sobre moralidade e seus impasses.
Eles retratam uma época que descobriu que a insistência na certeza moral subjetiva é, muitas vezes, a maneira de não nos perguntarmos sobre como as nossas ações serão recebidas em contextos intersubjetivos.
Boa parte das heroínas de seus filmes são mulheres que parecem a encarnação contemporânea da bela alma, com seu coração puro e sua incapacidade de compreender porque tanta catástrofe decorre de suas ações. Elas, no fundo, não entendem por que nem sempre o melhor a fazer é confiar na clareza de nossa intencionalidade moral.
No entanto, seu último filme tem algo que os outros não têm: uma mulher que não sabe o que deve fazer.
Melancholia é a história de Justine, uma mulher que vai se casar, mas não consegue. O casamento está lá, o castelo, a limusine, a festa cara, as promessas de felicidade, a promoção no trabalho. Mas ela é incapaz de impedir que tudo apareça com o gosto insípido do que está radicalmente fora do lugar. Ao final, ela se encontrará em um estado próximo a catatonia.
Enquanto o casamento fracassa e a impotência toma conta, um planeta, chamado Melancholia, aproxima-se da Terra em rota de colisão.
A metáfora não poderia ser mais clara a respeito desta doença que assombra a época e retira nossas forças a ponto de dissolver o mundo de nossos interesses. Doença que perdeu seu nome de origem para ser, atualmente, chamada de "depressão".
Dificilmente encontraremos um filme que retrate de maneira tão forte e realista tal quadro clínico. Mas sua grandeza está em outro lugar.
Numa época como a nossa, raras são as obras que nos lembram como a confrontação com o que Spinoza chamava de "paixões tristes" é, muitas vezes, a única maneira de aprender a lidar com o caráter brutal e contingente do fim, da perda, do insensato.
Por ter passado pelo "caminho do desespero", Justine é a única que sabe como terminar, como se portar diante do fim do mundo.
Na verdade, sua depressão deixou um saldo: saber como lidar com a natureza trágica de certos acontecimentos. Ela se cura ao compreender isso.
Mudança importante já que nossa sociedade deve ser a única que perdeu essa capacidade de lidar com o caráter trágico da finitude, da contingência e da contradição.
Preferimos o riso compulsivo e defensivo e nos dopar a ter que nos confrontarmos com o que parece ter a força de abalar o mundo de nossas certezas imediatas. Como Trier nos lembra, há algo de equívoco moral nesta preferência.